A maneira russa de mentir
Roger Scruton
26 de maio de 2017 - 13:10:54
De 1918 a 1991, o Pravda (em russo, “verdade”) foi o principal jornal da União Soviética e órgão oficial do Comitê Central do PCUS, Partido Comunista da URSS.
Talvez o paradoxo mais famoso descoberto pelos filósofos gregos seja o
do “mentiroso”. Um cretense diz que todos os cretenses são mentirosos:
se o que ele diz é verdadeiro, então é falso. Simplificando, considere:
“Esta frase é falsa.” Se for verdadeira é falsa, se falsa, verdadeira.
Os antigos levavam a sério esse paradoxo, pois se o conceito de verdade é
intrinsecamente contraditório, como o paradoxo implica, então todo o
discurso, todo o argumento, toda a tomada de decisão racional ocorre em
um vazio. Um filósofo antigo, Filitas de Cos, em seu desespero na busca
de uma solução, cometeu suicídio. Mais recentemente, o grande lógico
Alfred Tarski usou o paradoxo para argumentar que a verdade pode ser
definida em uma linguagem somente através de uma “meta-linguagem” com um
ponto de vista externo. Na visão de Tarski “Esta frase é falsa” não é
uma frase possível. Mas eu acabei de escrevê-la!
Um filósofo sobressai-se como um traidor da tradição, Nietzsche, com a
famosa declaração que não há verdades, apenas interpretações. A
declaração de Nietzsche, se verdadeira, é falsa. Nietzsche, que era mais
poeta do que filósofo, não era dissuadido por contradições: era mais
importante em sua visão destruir o discurso ordinário do que resgatá-lo.
Em seu rastro vieram as tropas de desconstrucionistas, pós-modernistas e
relativistas, todos encantados com a idéia de que não há verdade. Que o
que eu penso é tão bom quanto o que você pensa – de fato melhor, porque
sou “eu” pensando. Se você me oferecer um cargo de professor apesar do
fato de que minhas publicações não conterem nada que você reconheceria
como verdadeiro ou significativo, então isso mostra que você é tão
descolado quanto eu.
Não devemos nos surpreender assim se os nossos departamentos de
humanas são agora preenchidos por “professores de pós-verdade”, que
devem seu status intelectual às suas provas de que não há status
intelectual a ser alcançado.
Tudo isso vem à mente ao refletir sobre o papel da verdade na
diplomacia russa. A ideologia comunista descartou a idéia de verdade
como se fosse uma construção burguesa. O que importava era poder — e
você batizou como verdade aquelas doutrinas que o fornecem. Essa maneira
invencível de marginalizar a realidade foi exposta para todos por
Orwell, Koestler, Solzhenitsyn e, mais recentemente, Havel. Somente a
educação em uma universidade moderna, com doses repetidas de Foucault,
Deleuze e Vattimo, pode cegar para os perigos de uma filosofia que vê o
poder como o verdadeiro objetivo do discurso. Infelizmente, essa
educação existe, e temos que viver com o resultado disso.
Todos os que encontraram a máquina comunista estavam familiarizados
com a abolição da distinção entre verdade e poder, incluindo
companheiros de viagem como Eric Hobsbawm e Ralph Miliband, que
aprovaram isso. O que importava ao Partido Comunista era a meta: a
instalação do controle comunista sobre o máximo possível do mundo
civilizado. O mito do “cerco capitalista” — a descrição da expansão
militar soviética como uma “ofensiva de paz”, as invasões da Hungria, da
Tchecoslováquia e do Afeganistão como “assistência fraterna”: tudo
parte da diplomacia da pós-verdade. A falsificação do discurso político
estendia-se às minúcias. Os judeus eram perseguidos não como judeus, mas
como parte da conspiração burguesa-sionista-capitalista. Os católicos
foram presos por “subversão da república em colaboração com uma potência
estrangeira”. As tentativas da OTAN de instalar defesas antimísseis
tornaram-se “atos de agressão que desestabilizavam a Europa”. E assim
por diante. O resultado era uma espécie de discurso paranóico que não
podia ser respondido com argumento racional, já que cada argumento era
mais uma prova de que todos os que denunciavam as mentiras também as
diziam. A máquina de propaganda soviética enfrentava todos os fatos
gritando a plenos pulmões “mentiras!”, como um lógico louco que grita
“essa frase é falsa!”
A paranóia institucionalizada não desapareceu com o colapso do
comunismo. Poderá ser superada, mas apenas por uma imprensa livre,
instituições livres e universidades que protegem a liberdade de
expressão: coisas que estão sob ameaça em todo o mundo pós-verdade e que
não existem na Rússia há cem anos. Quando foi mostrado que os mísseis
russos derrubaram um avião civil malaio sobre a Ucrânia a resposta era
outra vez “mentiras!” As acusações de doping de atletas russos, invasão
de contas de e-mails dos EUA, mobilização de tropas na fronteira com a
Polônia, movimentos de armamento para o enclave de Kaliningrado,
constante violação do espaço aéreo da Suécia — todos encontraram a mesma
resposta. A premissa da diplomacia russa é: “Não há verdade e portanto
tudo o que você diz é uma mentira.” O que, se verdadeiro, é falso. Como
foi demonstrado.
Roger Scruton, “The Russian way of lying”, The Spectator, 23 de Março de 2017.
Tradução: Guilherme Pradi Adam
Revisão: Rodrigo Carmo
http://tradutoresdedireita.org
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